Conheça Renata Felinto, artista que está mudando os rumos da historiografia
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Renata Felinto é Doutora e Mestre em Artes Visuais pela UNESP e especialista em Curadoria e Educação em Museus de Arte pelo Museu de Arte Contemporânea da USP. Artista visual, professora e pesquisadora, a produção de Felinto é extensa, com enfoque atual nas narrativas de pessoas de ascendência negro-africana.
Ganhadora do Prêmio PIPA em 2020 e do prêmio de arte Select na categoria Arapuru, a artista possui obras em diferentes acervos do Brasil, como Museu Afro Brasil, Casa Oscar Niemeyer e CCSP.
Em 2020, Arapuru participou como apoiador do Prêmio Select, para apoiar projetos artísticos em andamento, um deles foi a performance “AMOR-Tecimento”, de Renata Felinto. Conversamos com a artista sobre sua trajetória e sua visão sobre a arte como campo de transformação social. Conheça mais sobre essa artista que está reescrevendo a historiografia vigente:
Você começou sua formação estudando moda no Sigbol Fashion Institute e depois seguiu para as artes visuais. Pode nos contar um pouco de como surgiu esse desejo de se aproximar da arte?
Em 2020, Arapuru participou como apoiador do Prêmio Select, para apoiar projetos artísticos em andamento, um deles foi a performance “AMOR-Tecimento”, de Renata Felinto. Conversamos com a artista sobre sua trajetória e sua visão sobre a arte como campo de transformação social. Conheça mais sobre essa artista que está reescrevendo a historiografia vigente:
Seu trabalho possui muitas camadas e plataformas: você atua como ilustradora, fotógrafa, educadora, escritora, performer, dentre outras áreas. Como essa pluralidade potencializa seu trabalho?
Essa pluralidade me permite perceber a arte em sua multiplicidade. Paralelamente, me mostra os impactos distintos que ela tem nas percepções das pessoas conforme a linguagem ou a mídia por meio da qual as pessoas acessam meus trabalhos. Potencializa no sentido de pessoas de círculos distintos ao do sistema da arte mais hegemônico também terem acesso ao meu trabalho.
Você também possui vários livros. Pode nos contar um pouco sobre sua atuação no campo editorial?
Eu amo escrever desde criança, aos 12 anos eu escrevia histórias, ia à biblioteca do bairro, tinha assinatura de livros e revistas. A escrita, ainda que eu tenha as minhas fragilidades ortográficas e gramaticais próprias de quem vem de um contexto histórico como o meu, é um meio importante de registro no mundo, de comunicação, de reflexão. Então, meu primeiro livro foi uma organização com colegas do trabalho. Queria encontrar formas de extravasar o conhecimento que produzimos em diálogo com o acervo do museu onde trabalhávamos, e ao mesmo tempo, socializar subsídios para que docentes da rede pública com interesse na lei 10.639/03, que tratava especificamente de culturas africanas e afro-brasileiras, de ministrarem as suas aulas cumprindo essa fundamental lei com mais propriedade.
Também escrevi por anos na Revista O Menelick 2ºAto sobre temas variados. Agora, estou organizando dois livros e um dossiê. Pra mim, a escrita como a conhecemos é um documento que atravessa os séculos do qual pessoas historicamente provenientes de grupos sociais marginalizados devem se apropriar para eternizar suas formas próprias de pensar.
Você tem diversas obras e séries, como Afro Retratos (2010-2018), Também Quero Ser Sexy (2012), Axexê de A Negra ou o Descanso das Mulheres que Mereciam Serem Amadas (2017). Muitas delas falam sobre a experiência que atravessa gênero e negritude. Como você vê a simbologia do seu trabalho na história da arte?
É uma simbologia que está aparecendo menos timidamente nos últimos vinte anos, especialmente considerando a produção de artistas como Rosana Paulino. Assim como muitos homens brancos falaram de suas vidas, amores, medos, desejos, por meio de inúmeras linguagens das artes, acho que agora é nosso momento de também compartilhar sobre nós. Não sermos mais retratadas a partir do olhar do outro, mas sim como somos a partir da subjetividade de cada mulher. É dessa forma que vejo a minha produção.
No mundo artístico, existem muitos debates relacionados à distinção entre prática e teoria. Você como acadêmica e artista, como vive essa relação?
Teoria é prática também pra mim, escrever a teoria é praticar a reflexão, por exemplo. Particularmente, tenho buscado fazer a cisão entre essas divisões, aos poucos e com sensatez.
Em entrevista para a Select você comenta sobre como é “fundamental pensar arte como educação, como um lugar de criação de novos mundos e reconfiguração social”. Pode nos contar um pouco mais sobre sua visão da arte no campo da transformação social?
Eu faço arte para as pessoas, para entendermos melhor as nossas existências, as relações sociais engendradas pela história que foi construída a partir das invasões, genocídios, epistemicídios, dominações etc. Considerando esse escopo, como podemos viver, como podemos ser, ser melhor, ser juntes. Se minhas obras entram em alguns acervos é uma grande felicidade, considero importante porque o acervo garante que ela poderá atravessar a minha existência matérica, caso ela não fique relegada à reserva técnica. No entanto, busco propor conversas visuais, compartilhar pensamentos, aprecio a escuta das pessoas sobre a experiência delas em relação ao contato com minha produção. A arte tem função sim, e pra mim é dar sentido, e fazer sentido pra quem cria e pra mais alguém, se puder nos proporcionar nos relacionarmos com a vida de uma maneira restaurativa, reflexiva, afetiva é melhor.
Pensando um pouco sobre o prêmio de arte Select, como foi participar dessa edição em que foi vencedora?
Eu me organizei com o auxílio da minha mãe, aproveitei o ano da pandemia para organizar meu trabalho, tendo consciência do meu privilégio de estar em casa. Quando me inscrevi, eu tinha plena noção da potência desse trabalho porque o grupo de pessoas que trabalharam comigo nele ainda estão em contato constante, foi transformador para algumas delas. Então, considerei que mais pessoas precisavam saber desse modo de operar nas feridas pelo toque, pelo afeto, que é tudo o que o processo de escravização, junto com a liberdade, nos sequestrou. E que o Brasil como sociedade ainda tenta sequestrar de nós nos expondo e nos violentando de muitas formas. A nossa resposta é nos reunirmos em cuidado e afeto.
Em AMOR-Tecimento, sua obra ganhadora do Prêmio Select, você trata sobre a tentativa diminuir o trauma vivido pela separação dos corpos negros. Como a seu trabalho opera para realizar esse resgate na sociedade brasileira contemporânea?
Opera a partir, inicialmente, da escuta, as pessoas compartilham suas experiências traumáticas com o racismo. Essa prática pérfida que atravessa nossos seres não resume quem somos e não é a mesma vivência com o racismo para pessoas negras. A cor das peles, o gênero, a classe, tudo interfere no impacto com o racismo. Então, em vez de responder com a mesma violência, não fomos nós que saímos de um continente para sequestrar pessoas e destruir povos, nós fomos para outro lugar que é o de resgate de epistemologias e de tecnologias gestadas a partir do sentido comunitário, do cuidado, do reconhecimento da outro pessoa como humana e do afeto. A sociedade brasileira contemporânea não quer resgatar afeto em relação a pessoas não brancas, ao contrário, o que vemos em relação a homens sendo assassinados pelas forças públicas ou privadas de segurança patrimonial, ou mesmo o que acontece agora num reallity show de abrangência nacional com o grupo de participantes não brancos são sinalizadores de que o afeto não é um sentimento e uma forma de tratar as pessoas que essa sociedade entenda que é nosso direito. Então, o trabalho propõe que uma forma de enfrentamento do racismo no Brasil é nos munirmos de auto-amor e de amor por quem, como nós, sofre os mais diversos tipos de violência. Desse modo, restauramos nossa importância como pessoa, rompemos com uma ciclicidade de auto-ódio, nos municiamos de afeto.
Como você acha que podemos pensar na ideia da cura de um trauma coletivo para além do campo da arte?
Sim, podemos sim. Mas precisa a população sem acesso, a que é desassistida pelo Estado, se compreender no “mesmo barco”. Precisa de reconhecimento de dificuldades e de privações parecidas na vida da outra pessoa, da vizinha, do primo, da pessoa do seu lado no ponto de ônibus. Criando um respeito pela empatia, pelo conhecimento da nossa história que é outra narrativa para além dessa oficializada e ensinada nas escolas. Se não tivermos a lei 10.639/03 informando a nós que somos pessoas com importância histórica para o desenvolvimento da humanidade, resgatando essa potencia que foi rompida e que nos é ensinada no Brasil a partir do holocausto da escravização de pessoas chamadas de negras, não conseguiremos. São muitas camadas para essa cura, a primeira é a consciência histórica e de comunidade. Não sou pobre porque meus pais não trabalharam, mas sim porque nos colocaram nessa condição, houve um saque de energia. Precisamos de honestidade para encarar a história.
Ainda sobre AMOR-Tecimento, é uma ação ainda em andamento. Pode nos contar um pouco sobre os próximos passos que serão dados após nosso contexto de pandemia?
Quero dar continuidade na natureza, num lugar mais privativo que nos coloque em contato com o mundo o mais natural possível para realizarmos a performance sem a intervenção de espectadores presenciais. Nessa continuidade, há uma culminância que não pode detalhar publicamente que alimenta nossa ancestralidade. Também gostaria muito de mais diversidade: pessoas surdas, cegas, com mobilidade reduzida – toda a gente.
Fotografias: Acervo do site renatafelinto.com
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